Como foi reconfortante se deparar com a
brilhante crônica dominical do articulista Antonio Prata, publicada hoje
no periódico "Folha de São Paulo" e transcrita na íntegra a seguir, que
desvela, sem titubear, os percalços que um incrédulo enfrenta ao tornar de domínio público que não é um fantoche manipulado por um suposto ser onisciente e onipresente!
Nada é para sempre.
Saudações incrédulas
Até breve...
João Paulo de Oliveira
"04/08/2013
Laranjas e chocolates
Para o León Ferrari
Sei que o papa já foi embora há uma semana e talvez seja um pouco tarde para falar de Deus. Acontece que, apesar dos milhões em Copacabana, da lama em Guaratiba, do justificado louvor e dos louváveis protestos causados pela visita do santo padre, o assunto só bateu aqui na porta quinta-feira à noite, quando a Stella, vizinha da frente, apareceu para conhecer minha filha.
Stella é americana e viveu no Brooklin, NY, até se apaixonar por um pianista brasileiro, nos anos 60. Veio passar um Réveillon nos trópicos e lá se vão 50 anos. No dia em que me mudei, precisei dar um telefonema, meu celular estava sem sinal, bati em sua porta. Uma semana depois, passei por um desses caminhões que vendem frutas, na esquina, vi umas laranjas lindíssimas, uma pilha de sóis poentes sobre o mar azul da caçamba, comprei um saco pra ela.
Inimizades precisam de pouco para surgir; amizades, felizmente, também. Um telefone, algumas dúzias de laranjas e pronto: ambos soubemos que havia alguém com quem se podia contar, do outro lado da rua. Talvez por isso ela tenha ficado incomodada com meu sorriso vacilante, quando, depois de conhecer minha filha, despediu-se com um "fiquem com Deus". Stella me encarou por um tempo, curiosa. "Você não acredita em Deus?" "Não."
Senti a decepção no rosto da minha vizinha. Não a decepção boba de quem passasse a me ver como um herege, um pecador, mas uma tristeza genuína: deixávamos de compartilhar um elo que, para ela, talvez fosse o maior. Stella me sorriu, um tanto compadecida.
Às vezes também me compadeço de mim. Preferia crer que há uma intenção por trás de tudo, que as cordas que amarram nossas existências são mais consistentes do que o programa de uma casa de shows no Brooklin, a má qualidade da telefonia, laranjas na caçamba de um caminhão. Então abro um livro, leio um poema do Drummond, do Fernando Pessoa ou do Vinicius e me revigoro em minha descrença.
Apesar de lamentar terrivelmente não ter qualquer esperança no além, acredito que o ateísmo --quando amparado por boa poesia, pelo menos-- é uma concepção mais elegante, mais profunda e que encerra mais respeito à vida do que a fé em Deus. Que eu exista, que você exista, que haja árvores que dão frutos e frutos que dão sementes, que esses frutos sejam doces justamente para que eu e você os comamos e espalhemos as sementes... Não é infinitamente mais belo se nada disso fizer parte de roteiro algum? Veja o universo, que coisa fantástica. Pra que serve? Pra nada: eis o grande milagre.
"E depois que a gente morre, o que você acha que acontece?", perguntou minha vizinha. "Acaba." "Nossa, é muito triste pensar assim." É. E quanto mais triste me parece, mais bonito fica. Do pó viemos, ao pó voltaremos, cá estamos neste "caminho entre dois túmulos", sabendo que "não há metafísica no mundo senão chocolates" e, contudo, vez por outra, nos botamos "comovidos como o diabo".
Stella foi embora. Olhei a carinha da minha filha, em seu ninho de cobertores e uns últimos versos vieram em meu auxílio, "Hoje a noite é jovem; da morte, apenas/Nascemos, imensamente". Depois fui comer chocolates.
@antonioprata"
Nada é para sempre.
Saudações incrédulas
Até breve...
João Paulo de Oliveira
"04/08/2013
Laranjas e chocolates
Para o León Ferrari
Sei que o papa já foi embora há uma semana e talvez seja um pouco tarde para falar de Deus. Acontece que, apesar dos milhões em Copacabana, da lama em Guaratiba, do justificado louvor e dos louváveis protestos causados pela visita do santo padre, o assunto só bateu aqui na porta quinta-feira à noite, quando a Stella, vizinha da frente, apareceu para conhecer minha filha.
Stella é americana e viveu no Brooklin, NY, até se apaixonar por um pianista brasileiro, nos anos 60. Veio passar um Réveillon nos trópicos e lá se vão 50 anos. No dia em que me mudei, precisei dar um telefonema, meu celular estava sem sinal, bati em sua porta. Uma semana depois, passei por um desses caminhões que vendem frutas, na esquina, vi umas laranjas lindíssimas, uma pilha de sóis poentes sobre o mar azul da caçamba, comprei um saco pra ela.
Inimizades precisam de pouco para surgir; amizades, felizmente, também. Um telefone, algumas dúzias de laranjas e pronto: ambos soubemos que havia alguém com quem se podia contar, do outro lado da rua. Talvez por isso ela tenha ficado incomodada com meu sorriso vacilante, quando, depois de conhecer minha filha, despediu-se com um "fiquem com Deus". Stella me encarou por um tempo, curiosa. "Você não acredita em Deus?" "Não."
Senti a decepção no rosto da minha vizinha. Não a decepção boba de quem passasse a me ver como um herege, um pecador, mas uma tristeza genuína: deixávamos de compartilhar um elo que, para ela, talvez fosse o maior. Stella me sorriu, um tanto compadecida.
Às vezes também me compadeço de mim. Preferia crer que há uma intenção por trás de tudo, que as cordas que amarram nossas existências são mais consistentes do que o programa de uma casa de shows no Brooklin, a má qualidade da telefonia, laranjas na caçamba de um caminhão. Então abro um livro, leio um poema do Drummond, do Fernando Pessoa ou do Vinicius e me revigoro em minha descrença.
Apesar de lamentar terrivelmente não ter qualquer esperança no além, acredito que o ateísmo --quando amparado por boa poesia, pelo menos-- é uma concepção mais elegante, mais profunda e que encerra mais respeito à vida do que a fé em Deus. Que eu exista, que você exista, que haja árvores que dão frutos e frutos que dão sementes, que esses frutos sejam doces justamente para que eu e você os comamos e espalhemos as sementes... Não é infinitamente mais belo se nada disso fizer parte de roteiro algum? Veja o universo, que coisa fantástica. Pra que serve? Pra nada: eis o grande milagre.
"E depois que a gente morre, o que você acha que acontece?", perguntou minha vizinha. "Acaba." "Nossa, é muito triste pensar assim." É. E quanto mais triste me parece, mais bonito fica. Do pó viemos, ao pó voltaremos, cá estamos neste "caminho entre dois túmulos", sabendo que "não há metafísica no mundo senão chocolates" e, contudo, vez por outra, nos botamos "comovidos como o diabo".
Stella foi embora. Olhei a carinha da minha filha, em seu ninho de cobertores e uns últimos versos vieram em meu auxílio, "Hoje a noite é jovem; da morte, apenas/Nascemos, imensamente". Depois fui comer chocolates.
@antonioprata"
BRILHANTE !!!!
ResponderExcluirTodesca
Caro Amigo Todesca!
ResponderExcluirEstamos na mesma sintonia!
Caloroso abraço! Saudações existenciais!
Até breve...
João Paulo de Oliveira
Diadema-SP
Apenas uma palavra - sublime!
ResponderExcluirAquele abraço e votos de boa semana!
Caro Amigo Pedro Coimbra!
ResponderExcluirFolgo saber que também apreciou!
Agradeço e retribuo os auspiciosos votos!
Caloroso abraço! Saudações desveladas!
Até breve...
João Paulo de Oliveira
Diadema-SP
Casto confradamigo
ResponderExcluirEXCELENTE STOP IMPRESSIONANTE STOP VERDADEIRO STOP EXTRAORDINÁRIO
João Paulo: parabéns pela escolha e pela transcrição.
Abç
HenriquAmigo!
ResponderExcluirFolgo saber que tão ilustre escritor e jornalista luso aprova minha escolha e transcrição!
Caloroso abraço! Saudações racionais!
Até breve...
João Paulo de Oliveira
Diadema-SP